Contos Negreiros
Testemunho e experiência em Marcelino Freire

Sálvio Fernandes de Melo

Na obra Contos Negreiros (2005), Marcelino Freire aborda temas delicados e polêmicos como racismo, turismo sexual, tráfico de órgãos e homossexualismo. A paisagem urbana é o cenário principal de seus cantos (contos). Algumas paisagens de importantes centros urbanos, como Recife e São Paulo, como as zonas de prostituição, morros e favelas e pontos turísticos, tornam-se palcos para a exposição de uma realidade complexa e miserável, vivida por prostitutas, “bichas”, negros, índios, além de abrigar traficantes de órgãos e de drogas, e turistas sexuais.
Essa palavra é utilizada pelo autor na narrativa Coração (in Contos Negreiros, 2005, p. 59-63). Ele não utiliza a palavra homossexual em nenhum momento desse texto nem em outras narrativas do livro. Em outra história intitulada, Meus amigos coloridos, (2005, p. 91-93), conta uma história que indica relacionamentos homossexuais, mas não utiliza o termo “bicha” nem o termo homossexual. Por isso, sempre que adotarmos essa expressão, usarei as referências dadas pelo autor.
Marcelino Freire apresenta contos e crônicas que procuram aproximar-se de uma linguagem coloquial, memorial e, às vezes, musical, baseada nas influências deixadas pela oralidade das ladainhas e canções nordestinas. Ele escreve a partir do ponto de vista do brasileiro miserável ou “morto-vivo”, tais como “zumbis” que vendem de tudo para sobreviver; drogas, o corpo, o rim. Sua criação literária passa pela valorização da memória, oriunda das heranças culturais – a cultura popular nordestina – e a percepção de um tempo presente. As experiências ocorridas no dia-a-dia das metrópoles brasileiras apresentam testemunhos de sujeitos que estão à margem da sociedade contemporânea. Sujeitos sem voz, sem espaços para o testemunho, vistos quase como objetos ou tratados como objetos pela mídia e por toda sociedade.
Embora o título do livro e a capa do mesmo, com uma imagem de um homem negro (possivelmente escravo), indiquem, num primeiro momento, que as narrativas são dedicadas à histórias sobre o negro, Marcelino não parte do preconceito ao negro ou de sua realidade de exclusão para compor sua obra. Ela é composta pela experiência de exclusão de todos os “mortos-vivos” que perambulam pelas ruas dos grandes centros do país, independentemente da cor da pele. No conto Yamami, por exemplo, um turista, ao viajar pela Amazônia, deixa claro sua aversão ao Brasil e suas florestas, mas, ao mesmo tempo, narra seu desejo por uma criança indígena (prostituta), como é possível observar neste trecho:

E os índios? O que tem os índios?
O que você achou dos índios do Brasil?
Fodam-se os índios do Brasil. Toquem
fogo na floresta. Vão à merda(...) Só lembro de
Yamami. Sempre gostei de crianças. Aqui é
proibido. Yamami, meu tesouro perdido(...)
Indiazinha típica dos seus trezes anos. As unhas
pintadas, descalçadas. Tintas extintas na cara.
Coisinha de árvore(...)

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